Passaram dez anos sobre o devastador maremoto e consequente tsunami do Oceano Índico que destruiu quase 250.000 vidas em geografias tão distintas como o Sri Lanka, a Índia, a Tailândia e a Indonésia. Foi a 26 de dezembro de 2004, o dia em que morte visitou o litoral de todo o Oceano Índico. E eu estava “perto”.
Nesse fatídico dia ainda natalício, andava a viajar pelo Laos. Estava em Van Vieng, para ser exato. Assim que soube da notícia, após uma tarde de diversão a descer o rio de tubing e quando ninguém tinha ainda noção da verdadeira dimensão da catástrofe, fui “desviado” pelo jornal Público para cobrir a tragédia. Primeiro no sul da Tailândia, depois na costa oeste do Sri Lanka. Foi a experiência emocionalmente mais forte e difícil de toda a minha vida.
Nunca imagem alguma transmitirá o que senti durante aqueles dias. Eu e todos os que estiveram a trabalhar naqueles cenários apocalípticos – as equipas de socorro, os voluntários, os profissionais da comunicação social de todo o mundo. Socorro-me de palavras que então escrevi, a propósito do que encontrei em Khao Lak:
Encontrei um cenário tremendo. Nunca os meus olhos tinham visto tamanho horror. A destruição de extensas praias e respetivos hotéis e resorts, reduzidos a nada com a passagem furiosa das águas. O cheiro a morte, nauseabundo, proveniente de corpos que se amontoavam por todo o lado na região de Khao Lak, 100 quilómetros a norte de Phuket. E a dor dos sobreviventes, de olhos cravados no chão, procurando quase sempre em vão um sinal de vida de familiares ou amigos. Alguns terão encontrado. Mas a maior parte procurava já apenas cadáveres, com o olhar encharcado de sofrimento e o coração visivelmente apertado. E não consigo sequer imaginar o que iria na alma daqueles que, por entre cadáveres completamente deformados, alinhados nos jardins de alguns templos feitos morgues, tentavam identificar algum ente querido.
O cheiro a morte.
Os corpos espalhados pelo chão, inchados, disformes.
O desespero de quem procura um filho, um marido, um amigo.
O sofrimento de quem perscruta as filas de cadáveres nas morgues improvisadas.
O cheiro a morte!
Depois fui para o Sri Lanka, de novo a pedido do Público, e assim passei a meia-noite do último dia de 2004 a sobrevoar o Índico, a caminho de Colombo. Estranhamente, já não encontrei mortos, apenas destruição. Mas deparei-me com o sofrimento dos sobreviventes. Com a fome. Com a sede. E o sofrimento alheio foi ainda mais difícil de suportar. Socorro-me das palavras de então.
O mais básico combate de qualquer espécie – a luta pela sobrevivência – era travado, diante dos meus olhos, por milhares de indivíduos dispersos por quilómetros e quilómetros de estrada. A cada carro que passava, os desalojados faziam sinais na tentativa de o fazer parar. Pediam água, comida, um simples coco, qualquer coisa que os ajudasse a manter vivos. Vi gente brigar por meia dúzia de bolachas e até por um cigarro oferecido. As mãos estendidas e os olhares de desespero que me foram dirigidos não serão fáceis de apagar da memória nos tempos mais próximos. A agonia da fome não é fácil de encarar.
As mãos estendidas.
A luta pela sobrevivência.
A agonia da fome!
Às tantas, fui deixando de comer, de falar. O olhar foi-se colando ao chão, inexpressivo. E assim me afundei na tristeza e tive de regressar a Bangkok para não entrar em modo autodestrutivo. Repito: não me recordo de ter vivido experiência tão emocionalmente exigente como aqueles dias a fotografar a morte e a luta pela sobrevivência. É por isso que muito admiro os jornalistas que cobrem tragédias humanas.
O tsunami de 2004, dez anos depois
Pensar no que vi e vivi fez-me sofrer durante todos estes anos. Continua a fazer. Nos workshops de Escrita de Viagens, sempre que a conversa resvala para o tsunami de 2004, não consigo conter uma humidade teimosa na retina. Reviver memórias dolorosas tem destas coisas. Talvez por isso, nunca voltei a ver as fotos brutalmente cruas que tirei na Tailândia e no Sri Lanka ao serviço do jornal Público. E nunca as mostrei a ninguém. Nunca!
Não vai ser hoje.
Quando comecei a escrever este post, pensei que talvez tivesse chegado a hora de fazer a catarse final e libertar-me deste peso. Abri os arquivos, espreitei meia dúzia de fotos tiradas em Khao Lak e rapidamente cheguei à conclusão de que não consigo. Não quero ver. Mesmo! E não sou o único. Talvez dez anos não seja vida suficiente para um luto completo perante uma catástrofe desta magnitude. 250.000 vítimas. O cheiro a morte…
Na verdade, este post não era para ser sobre o que sinto, que isso pouco importa. O fundamental é o que ainda não disse mas vocês já sabem: que os tailandeses e os indonésios são povos com uma força incrível e souberam reagir e dar a volta desde a primeira hora. Nunca me esquecerei de os ver a limpar as suas lojas, vendendo carteiras enlameadas e pensando no futuro, ainda as ruas de Phuket estavam atulhadas de destroços e cadáveres.
Foi uma lição de vida.
Este post era para ser sobre esperança, mas ainda dói fundo na alma.
Deixo-vos com o mais bonito texto que escrevi sobre o tsunami de 2004, pela boca de uma havaiana abandonada na praia. Porque a esperança não morre. E o mar hoje está calmo. Sem ondas.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.