Após as imensas dificuldades passadas na travessia da Pamir Highway, o Tajiquistão ofereceu-nos dias de prazer e contemplação, literalmente no meio de nada. Depois de um último e doloroso esforço, acabámos por entrar no verdejante Quirguistão, onde desfrutámos da natureza exuberante, da pacatez de uma pequena vila e, até, dos prazeres urbanos da cidade de Osh. Com a China cada vez mais perto.
“Good times, for a change” e as palavras dos The Smiths soavam-me aos ouvidos como pura poesia, naquele que seria o dia da nossa mudança. Deixar o Tajiquistão para trás porém, não me parecia pura poesia. Pedalar no país, por entre montanhas que ultrapassam a beleza que julgava poderem ter, acampar nos sítios mais isolados, ter como vista picos nevados, iaques e riachos de água gelada era a representação daquilo que sonhava, antes de partir, que uma viagem como estas deveria ser.
O Tajiquistão foi o país da natureza, aquele que mais vezes nos surpreendeu, ou pela elevação das suas cadeias montanhosas ou pelos lagos espelhando as nuvens carregadas de branco, pelos imensos desertos a mais de 4.000 metros de altitude ou pelo vento forte que nos empurrava em todas as direções e nos fazia sorrir, nos queimava, nos secava a pele até ao ponto de nos vermos como puras serpentes em época de mudança de pele.
O Tajiquistão, apesar da inexistência de uma gastronomia rica, ofereceu-nos momentos de prazer e contemplação, enquanto preparávamos uma sopa ou mais uns noddles numa qualquer paragem no meio do nada, enquanto nada passava, nada se ouvia e nada acontecia. Possibilitou-nos lavarmo-nos em rios, beber deles, cozinhar com a água que deles tirávamos e adormecer com o barulho da água que corria, encosta abaixo, no seu caminho para um qualquer grande lago. As pessoas pareceram-nos acolhedoras, simpáticas e sempre prontas a dois dedos de conversa, nem que soubéssemos de antemão que nada entenderíamos e nada faríamos entender, pois mais uma vez a questão do idioma nos pregava uma rasteira e nos atirava para o canto da ignorância.
A última etapa mostrava-se, contudo, dolorosa. Aquele porto de montanha que julgámos poder atravessar num só dia teve de esperar pelo dia seguinte. E a fronteira trouxe-nos outro problema: a falta de água. Cansados pela íngreme subida e pelo fortíssimo vento, as bicicletas foram arremessadas para a berma e caminhei para aquele lago de águas paradas que nos serviu de salvação. Não nos preocupava a qualidade da água. Era água! Lá em cima, os militares esperavam-nos para mais um carimbo no passaporte, o da saída. Tímidos flocos de neve caiam por entre grossas pingas de chuva que aleijavam quando nos batiam na pele. Uns quilómetros à frente, e depois dos pés molhados naquele pedaço de estrada que havia sido arrancado pela força do rio, uns polícias de farda verde tropa faziam-nos passar por três escritórios diferentes antes de nos deixarem entrar num país mais verde, mais nómada e mais encoberto por nuvens que o Tajiquistão.
“Welcome to Kyrgyzstan” – disse-nos no seu melhor inglês um militar na parte da alfândega. Sinal verde para seguir caminho e a sensação de descida era única. Há muito que não a sentíamos por tanto tempo seguido. Chovia, fazia frio, mas isso não nos demovia da ideia de chegar a Sary-Tash, a primeira povoação no país, com meia dúzia de casas habitadas, dúzia e meia de pessoas e duas estradas que cortavam a pequena povoação: uma para o interior do país, outra para a China. A China! Optámos por dormitar numa homestay, jantando batatas secas – a má gastronomia continuava, pois então! – acompanhadas de chá – sempre chá – e pão do dia anterior, e nem a banho tivemos direito, pela inexistência dessa possibilidade.
Encontrámos uns amigos de curta data com quem já havíamos privado uns dois meses atrás, também eles queimados pelas intempéries, e passámos um serão em francês. Pensámos ficar por ali um dia mais a descansar mas, no dia seguinte, as bicicletas descansavam do cansaço e nós esticávamos o dedo para Osh.
A estrada corria livre e nervosa por entre a montanha, desequilibrando-se vertiginosamente, assustando-nos a cada curva, a cada buraco, a cada passagem mais arriscada, fazendo-nos patinar na lama. O verde era infinito. Muito mais verde. Cavalos a toda a volta, livres. Iaques, vacas, ovelhas, cabras e crianças, muitas crianças brincando em volta dos pequenos yurts brancos que pontuavam o imenso tapete. Embora nunca tendo estado na Escócia e mesmo sabendo que as montanhas não são tão altas, a comparação era feita vezes sem conta.
A chegada a Osh, sempre a descer, trouxe-nos calor, um gigante mercado com frutos de todas as cores e formatos, múltiplos sabores, uma enorme quantidade de saladas a provar, burburinho de uma animada grande cidade, parques verdes com karaoke, carrosséis, mulheres de mini-saia e hotéis, muitos hotéis, espaços de internet, animação e gente nas ruas. Que estranha que era a civilização. Ficámo-nos por ali, gozando de tudo a que tínhamos direito.
Encontrámos mais amigos de curta data, saímos, jantámos e aproveitámos estes três dias de férias para olhar para o ecrã de vários computadores falando com amigos, estes de longa data, família, comprando material novo para a viagem, sabendo das últimas notícias: como andavam as guerras no mundo, as com armas e as com notas, o que se passava no desporto, as crónicas dos conhecidos que também andam em viagem, e todo um sem número de “barbaridades, baboseiras e besteiras” sem interesse, como um amigo nosso gosta sempre de referir. Osh revelou-se grande de mais para aquilo a que estávamos habituados. Tão grande que até mais três portugueses conseguia alojar, além de nós: foram os primeiros portugueses que encontrámos a viajar desde que começámos.
Voltámos a Sary-Tash num táxi-jipe partilhado com mais oito pessoas, cheio de mais para o nosso gosto, desgovernado de mais, inseguro de mais. Voltar à pacata vila fez-nos encontrar o casal inglês que conhecemos no Uzbequistão e com quem, mais uma vez, partilhámos a vazia estrada que nos levou até à China, ali tão perto. A última noite foi passada em volta da mesa da guesthouse que não era a nossa, bebendo café Illy – um café em condições, finalmente – oferecido por um casal de meia idade italiano, lembrando histórias e aventuras dos últimos quinze dias. A China ali tão perto!
As montanhas em volta foram reveladas no último fim de tarde também, gigantes, brancas. O vento soprava na direcção desejada, para este, para a China, ali tão perto. O asfalto era perfeito, liso, uma tira negra que corria por entre o verde da paisagem até ao país do sol nascente. Adormecemos a sonhar com a China.
Apesar dos muitos milhares de quilómetros já percorridos, a China sempre nos pareceu longe, muito longe, quase inalcançável. Agora, aqui tão perto, no dia em que nos encontrámos para mais uma vez percorrermos o caminho juntos, via-se um sorriso nervoso na cara de todos, ansiosos por pedalar, ansiosos pela mudança, ansiosos por alcançar mais este objetivo. Com a China aqui tão perto!
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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