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Recarregar baterias no Quirguistão (Eurasia #24)

Por Rafael Polónia e Tanya Ruivo

Recarregar baterias no Quirguistão - Eurásia

Após as imensas dificuldades passadas na travessia da Pamir Highway, o Tajiquistão ofereceu-nos dias de prazer e contemplação, literalmente no meio de nada. Depois de um último e doloroso esforço, acabámos por entrar no verdejante Quirguistão, onde desfrutámos da natureza exuberante, da pacatez de uma pequena vila e, até, dos prazeres urbanos da cidade de Osh. Com a China cada vez mais perto.

Good times, for a change” e as palavras dos The Smiths soavam-me aos ouvidos como pura poesia, naquele que seria o dia da nossa mudança. Deixar o Tajiquistão para trás porém, não me parecia pura poesia. Pedalar no país, por entre montanhas que ultrapassam a beleza que julgava poderem ter, acampar nos sítios mais isolados, ter como vista picos nevados, iaques e riachos de água gelada era a representação daquilo que sonhava, antes de partir, que uma viagem como estas deveria ser.

O Tajiquistão foi o país da natureza, aquele que mais vezes nos surpreendeu, ou pela elevação das suas cadeias montanhosas ou pelos lagos espelhando as nuvens carregadas de branco, pelos imensos desertos a mais de 4.000 metros de altitude ou pelo vento forte que nos empurrava em todas as direções e nos fazia sorrir, nos queimava, nos secava a pele até ao ponto de nos vermos como puras serpentes em época de mudança de pele.

O Tajiquistão, apesar da inexistência de uma gastronomia rica, ofereceu-nos momentos de prazer e contemplação, enquanto preparávamos uma sopa ou mais uns noddles numa qualquer paragem no meio do nada, enquanto nada passava, nada se ouvia e nada acontecia. Possibilitou-nos lavarmo-nos em rios, beber deles, cozinhar com a água que deles tirávamos e adormecer com o barulho da água que corria, encosta abaixo, no seu caminho para um qualquer grande lago. As pessoas pareceram-nos acolhedoras, simpáticas e sempre prontas a dois dedos de conversa, nem que soubéssemos de antemão que nada entenderíamos e nada faríamos entender, pois mais uma vez a questão do idioma nos pregava uma rasteira e nos atirava para o canto da ignorância.

Acampar no Quirguistão
Acampar no Quirguistão

A última etapa mostrava-se, contudo, dolorosa. Aquele porto de montanha que julgámos poder atravessar num só dia teve de esperar pelo dia seguinte. E a fronteira trouxe-nos outro problema: a falta de água. Cansados pela íngreme subida e pelo fortíssimo vento, as bicicletas foram arremessadas para a berma e caminhei para aquele lago de águas paradas que nos serviu de salvação. Não nos preocupava a qualidade da água. Era água! Lá em cima, os militares esperavam-nos para mais um carimbo no passaporte, o da saída. Tímidos flocos de neve caiam por entre grossas pingas de chuva que aleijavam quando nos batiam na pele. Uns quilómetros à frente, e depois dos pés molhados naquele pedaço de estrada que havia sido arrancado pela força do rio, uns polícias de farda verde tropa faziam-nos passar por três escritórios diferentes antes de nos deixarem entrar num país mais verde, mais nómada e mais encoberto por nuvens que o Tajiquistão.

Welcome to Kyrgyzstan” – disse-nos no seu melhor inglês um militar na parte da alfândega. Sinal verde para seguir caminho e a sensação de descida era única. Há muito que não a sentíamos por tanto tempo seguido. Chovia, fazia frio, mas isso não nos demovia da ideia de chegar a Sary-Tash, a primeira povoação no país, com meia dúzia de casas habitadas, dúzia e meia de pessoas e duas estradas que cortavam a pequena povoação: uma para o interior do país, outra para a China. A China! Optámos por dormitar numa homestay, jantando batatas secas – a má gastronomia continuava, pois então! – acompanhadas de chá – sempre chá – e pão do dia anterior, e nem a banho tivemos direito, pela inexistência dessa possibilidade.

Sary Tash, no Quirguistão
Sary Tash, no Quirguistão

Encontrámos uns amigos de curta data com quem já havíamos privado uns dois meses atrás, também eles queimados pelas intempéries, e passámos um serão em francês. Pensámos ficar por ali um dia mais a descansar mas, no dia seguinte, as bicicletas descansavam do cansaço e nós esticávamos o dedo para Osh.

A estrada corria livre e nervosa por entre a montanha, desequilibrando-se vertiginosamente, assustando-nos a cada curva, a cada buraco, a cada passagem mais arriscada, fazendo-nos patinar na lama. O verde era infinito. Muito mais verde. Cavalos a toda a volta, livres. Iaques, vacas, ovelhas, cabras e crianças, muitas crianças brincando em volta dos pequenos yurts brancos que pontuavam o imenso tapete. Embora nunca tendo estado na Escócia e mesmo sabendo que as montanhas não são tão altas, a comparação era feita vezes sem conta.

A chegada a Osh, sempre a descer, trouxe-nos calor, um gigante mercado com frutos de todas as cores e formatos, múltiplos sabores, uma enorme quantidade de saladas a provar, burburinho de uma animada grande cidade, parques verdes com karaoke, carrosséis, mulheres de mini-saia e hotéis, muitos hotéis, espaços de internet, animação e gente nas ruas. Que estranha que era a civilização. Ficámo-nos por ali, gozando de tudo a que tínhamos direito.

Paisagem rural do Quirguistão
Paisagem rural do Quirguistão

Encontrámos mais amigos de curta data, saímos, jantámos e aproveitámos estes três dias de férias para olhar para o ecrã de vários computadores falando com amigos, estes de longa data, família, comprando material novo para a viagem, sabendo das últimas notícias: como andavam as guerras no mundo, as com armas e as com notas, o que se passava no desporto, as crónicas dos conhecidos que também andam em viagem, e todo um sem número de “barbaridades, baboseiras e besteiras” sem interesse, como um amigo nosso gosta sempre de referir. Osh revelou-se grande de mais para aquilo a que estávamos habituados. Tão grande que até mais três portugueses conseguia alojar, além de nós: foram os primeiros portugueses que encontrámos a viajar desde que começámos.

Voltámos a Sary-Tash num táxi-jipe partilhado com mais oito pessoas, cheio de mais para o nosso gosto, desgovernado de mais, inseguro de mais. Voltar à pacata vila fez-nos encontrar o casal inglês que conhecemos no Uzbequistão e com quem, mais uma vez, partilhámos a vazia estrada que nos levou até à China, ali tão perto. A última noite foi passada em volta da mesa da guesthouse que não era a nossa, bebendo café Illy – um café em condições, finalmente – oferecido por um casal de meia idade italiano, lembrando histórias e aventuras dos últimos quinze dias. A China ali tão perto!

Uma criança no Quirguistão
Simpatia infantil

As montanhas em volta foram reveladas no último fim de tarde também, gigantes, brancas. O vento soprava na direcção desejada, para este, para a China, ali tão perto. O asfalto era perfeito, liso, uma tira negra que corria por entre o verde da paisagem até ao país do sol nascente. Adormecemos a sonhar com a China.

Apesar dos muitos milhares de quilómetros já percorridos, a China sempre nos pareceu longe, muito longe, quase inalcançável. Agora, aqui tão perto, no dia em que nos encontrámos para mais uma vez percorrermos o caminho juntos, via-se um sorriso nervoso na cara de todos, ansiosos por pedalar, ansiosos pela mudança, ansiosos por alcançar mais este objetivo. Com a China aqui tão perto!

O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.

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Rafael Polónia e Tanya Ruivo

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