As questões relacionadas com a saúde são as que mais limitam a decisão de viajar com uma criança de tenra idade. “E se o meu filho adoecer, longe de tudo?”. A impotência perante uma criança prostrada na cama a arder em febre, longe de casa, é ainda mais angustiante do que quando isso acontece em casa. Nada de novo. Mas é um facto com o qual nós, que conscientemente decidimos viajar com a nossa filha, tivemos de lidar cedo nesta viagem.
São 22:25, noite escura, aldeia vazia, ninguém nas ruas de Lanta Old Town. A Pikitim arde em febre. Diz que lhe dói os ouvidos e a garganta ao engolir. Rabuja. Esperneia. Está visivelmente desconfortável. Não consegue dormir. O termómetro aproxima-se dos 39 graus centígrados.
Há que tomar decisões. Na manhã seguinte é suposto apanharmos um ferryboat rumo a Koh Muk, uma pequena ilha tailandesa onde não há hospitais, nem clínicas, nem tampouco médicos. O bilhete está pago e o bungalow reservado. Mas a Pikitim arde em febre. Resiste a tomar até meio ben-u-ron partido em quartos, por birra, por irritação, porque lhe dói mesmo ao engolir – nunca saberemos toda a verdade.
Duas, três, quatro da manhã, noite ainda escura passada em sobressalto. Em Koh Lanta há um hospital – bom ou mau, pelo menos é um hospital, pensamos. Opções: podemos seguir para Koh Muk; ou ir ao hospital de Koh Lanta, seja lá como ele for, avaliar a situação, perder o dinheiro do ferry e decidir depois o que fazer. O pediatra – nosso refúgio, em quem confiamos 100% – tem o telemóvel desligado. Estamos por nossa conta. Às seis da manhã, com a filha inconsolável, tomamos a decisão. Já é dia, procuro nas ruas semidesérticas quem me leve ao hospital de Koh Lanta.
São cerca de 7:00 quando chegamos ao hospital, que não tem ar de muito confiável. A Pikitim sofre por antecipação (é muito mariquinhas com sangue, médicos e hospitais). Chega um homem com a orelha aberta, a sangrar, às urgências. Protejo a Pikitim dessa visão. O médico não está, deverá chegar por volta das 9:00 porque teve “uma noite com muito trabalho”, dizem-nos umas enfermeiras (pelo menos parecem enfermeiras!). OK, só há um médico no hospital, percebemos finalmente. Dois ladyboys continuam às voltas no exterior do hospital. Há gatos, lagartixas e outros bicharocos na sala da urgência. As enfermarias são logo ao lado, e apenas uma janela envidraçada as separa do exterior – vê-se tudo lá para dentro. Alguns pacientes estão cá fora, de pijama, a tomar o pequeno-almoço.
O médico chega, somos logo atendidos (por sermos estrangeiros?), diagnostica uma infeção na garganta e ouvidos, e manda despistar o dengue. Pânico! Dengue? Só à força conseguimos que a Pikitim deixasse que o dedo fosse picado, no meio de choros e gritos (já disse que é mariquinhas?). “Esperem cinco minutos”, diz a moça do laboratório. Dengue despistado – alívio!
9:45 da manhã. Saímos do hospital com os medicamentos – antipirético, anti-inflamatório e antibiótico – em doses certas (alô governantes de Portugal?!), de volta a “casa”. Após muita resistência, a Pikitim lá toma o antibiótico, uma cápsula enorme que custa a engolir. O ferry já partiu, mas decidimos na mesma tentar seguir para Koh Muk. Meia dúzia de telefonemas da prestabilíssima Tam, responsável pela pousada em Lanta Old Town, e lá conseguimos a devolução de parte do dinheiro do ferry e um lugar no speedboat do fim da manhã com destino a Koh Muk. Estamos mais tranquilos – até porque ainda não sabemos o que iria acontecer a seguir.
Chegados a Koh Muk, é hora da segunda dose de antibiótico. A Pikitim não consegue engolir; a cápsula derrete-se na boca após demasiado tempo em contacto com a língua; a língua fica azul e verde, a Pikitim desespera. E nós também. Logo a seguir, conseguimos finalmente comunicar via email com o pediatra. “Wait and see”, diz-nos, a propósito dos sintomas e da febre. Afinal, segundo ele, não era para tomar os antibióticos. Alívio por um lado, preocupação por outro. Mas confiamos a 100% no pediatra da Pikitim (já disse isso?) e, por isso, paramos mesmo o antibiótico (que, já de si, estava a ser problemático tomar).
Só que ela estava a piorar. Acrescentámos na mensagem seguinte: “Agora está prostrada, não quer fazer nada, tem febre e apareceram-lhe umas pintinhas brancas na ponta da língua (ela diz que a língua pica)”. O diagnóstico chega minutos depois: “estomatite vírica. Cura-se com ben-u-ron, comidas frias e… paciência”. Pesquisámos o que queria dizer, bate certo com todos os sintomas da Pikitim. Na mouche! Conclusão: não há nada a fazer, é esperar.
É uma coisa muito chata, isto da estomatite vírica. Aparecem aftas na língua e até no céu da boca (confirma), o hálito é medonho (confirma), as gengivas ficam inchadas (confirma) e por vezes com sangramentos (ainda não, felizmente), baba-se muito (confirma), pode ter febre (confirma). Como é natural, a vontade de comer é nula, tal como a disposição para fazer seja o que for. Ficamos tristes com o diagnóstico, por ser coisa chata e potencialmente demorada, mas aliviados por, pelo menos, sabermos o que se passa. Ter informação dá conforto e ajuda a ser mais racional.
O tempo passa, a Pikitim emagrece a olhos vistos.
No momento em que escrevo, a Pikitim tem medo de ir para o mar porque tem um corte no pé, não come nem bebe porque lhe dói a língua (e os ouvidos a engolir, nas poucas vezes que tenta beber algo), continua a fazer febres, anda macambúzia, não sabe o que quer nem tem opinião sobre nada (a resposta mais comum por estes dias é encolher os ombros, algo muito anormal numa criança assertiva e decidida). É angustiante ver uma filha assim. Principalmente o facto de não comer nem beber (nem água!) e de estar a emagrecer de dia para dia. Temos conseguido, ao menos, que beba Dioralyte, por pouco que seja, uma vez por dia.
No momento em que escrevo de novo, acabámos de chegar a Langkawi, na Malásia. Dentro de dias, se a Pikitim não melhorar, colocar-se-á de novo a questão: continuar na Malásia, onde há teoricamente cuidados de saúde de qualidade, ou apanhar o voo marcado para Manila, nas Filipinas, onde contávamos passar três semanas deslumbrantes mas que não é propriamente conhecido por ser um país desenvolvido?
É uma angústia ver um filho doente e sentir-se impotente para ajudar. Apesar de viajantes experientes, estamos fora da nossa “zona de conforto”. E um filho é um filho. Nunca pensámos em desistir e não é por isso que vamos deixar de viajar, mas que é uma angústia ter um filho doente, lá isso é. Resta a certeza de sairmos mais fortes deste episódio e mais bem preparados para as adversidades futuras.
Leia também o artigo sobre prevenção de doenças pediátricas relacionadas com viagens e não deixe de fazer uma consulta do viajante para se aconselhar com um médico especialista.
P.S. No momento em que publico o texto, um dia depois de o ter escrito, a Pikitim está muito melhor. Começou a comer e a beber (quase nada é melhor que nada), as pintinhas na língua diminuíram e a febre parece que foi embora de vez. Alegria!
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Sobre o Diário da Pikitim
Este post pertence a uma série que relata uma volta ao mundo em família, com 10 meses de duração. Um projeto para descomplicar e mostrar que é possível viajar com crianças pequenas, por todo o mundo. As crónicas da viagem foram originalmente publicadas em 2012 na revista Fugas e no blog Diário da Pikitim.
Veja também o post intitulado Viajar com crianças: 7 coisas que os pais devem saber.