Angústias (#14)

Hospital de Koh Lanta
Hospital de Koh Lanta

As questões relacionadas com a saúde são as que mais limitam a decisão de viajar com uma criança de tenra idade. “E se o meu filho adoecer, longe de tudo?”. A impotência perante uma criança prostrada na cama a arder em febre, longe de casa, é ainda mais angustiante do que quando isso acontece em casa. Nada de novo. Mas é um facto com o qual nós, que conscientemente decidimos viajar com a nossa filha, tivemos de lidar cedo nesta viagem.

São 22:25, noite escura, aldeia vazia, ninguém nas ruas de Lanta Old Town. A Pikitim arde em febre. Diz que lhe dói os ouvidos e a garganta ao engolir. Rabuja. Esperneia. Está visivelmente desconfortável. Não consegue dormir. O termómetro aproxima-se dos 39 graus centígrados.

Há que tomar decisões. Na manhã seguinte é suposto apanharmos um ferryboat rumo a Koh Muk, uma pequena ilha tailandesa onde não há hospitais, nem clínicas, nem tampouco médicos. O bilhete está pago e o bungalow reservado. Mas a Pikitim arde em febre. Resiste a tomar até meio ben-u-ron partido em quartos, por birra, por irritação, porque lhe dói mesmo ao engolir – nunca saberemos toda a verdade.

Duas, três, quatro da manhã, noite ainda escura passada em sobressalto. Em Koh Lanta há um hospital – bom ou mau, pelo menos é um hospital, pensamos. Opções: podemos seguir para Koh Muk; ou ir ao hospital de Koh Lanta, seja lá como ele for, avaliar a situação, perder o dinheiro do ferry e decidir depois o que fazer. O pediatra – nosso refúgio, em quem confiamos 100% – tem o telemóvel desligado. Estamos por nossa conta. Às seis da manhã, com a filha inconsolável, tomamos a decisão. Já é dia, procuro nas ruas semidesérticas quem me leve ao hospital de Koh Lanta.

São cerca de 7:00 quando chegamos ao hospital, que não tem ar de muito confiável. A Pikitim sofre por antecipação (é muito mariquinhas com sangue, médicos e hospitais). Chega um homem com a orelha aberta, a sangrar, às urgências. Protejo a Pikitim dessa visão. O médico não está, deverá chegar por volta das 9:00 porque teve “uma noite com muito trabalho”, dizem-nos umas enfermeiras (pelo menos parecem enfermeiras!). OK, só há um médico no hospital, percebemos finalmente. Dois ladyboys continuam às voltas no exterior do hospital. Há gatos, lagartixas e outros bicharocos na sala da urgência. As enfermarias são logo ao lado, e apenas uma janela envidraçada as separa do exterior – vê-se tudo lá para dentro. Alguns pacientes estão cá fora, de pijama, a tomar o pequeno-almoço.

O médico chega, somos logo atendidos (por sermos estrangeiros?), diagnostica uma infeção na garganta e ouvidos, e manda despistar o dengue. Pânico! Dengue? Só à força conseguimos que a Pikitim deixasse que o dedo fosse picado, no meio de choros e gritos (já disse que é mariquinhas?). “Esperem cinco minutos”, diz a moça do laboratório. Dengue despistado – alívio!

9:45 da manhã. Saímos do hospital com os medicamentos – antipirético, anti-inflamatório e antibiótico – em doses certas (alô governantes de Portugal?!), de volta a “casa”. Após muita resistência, a Pikitim lá toma o antibiótico, uma cápsula enorme que custa a engolir. O ferry já partiu, mas decidimos na mesma tentar seguir para Koh Muk. Meia dúzia de telefonemas da prestabilíssima Tam, responsável pela pousada em Lanta Old Town, e lá conseguimos a devolução de parte do dinheiro do ferry e um lugar no speedboat do fim da manhã com destino a Koh Muk. Estamos mais tranquilos – até porque ainda não sabemos o que iria acontecer a seguir.

Chegados a Koh Muk, é hora da segunda dose de antibiótico. A Pikitim não consegue engolir; a cápsula derrete-se na boca após demasiado tempo em contacto com a língua; a língua fica azul e verde, a Pikitim desespera. E nós também. Logo a seguir, conseguimos finalmente comunicar via email com o pediatra. “Wait and see”, diz-nos, a propósito dos sintomas e da febre. Afinal, segundo ele, não era para tomar os antibióticos. Alívio por um lado, preocupação por outro. Mas confiamos a 100% no pediatra da Pikitim (já disse isso?) e, por isso, paramos mesmo o antibiótico (que, já de si, estava a ser problemático tomar).

Só que ela estava a piorar. Acrescentámos na mensagem seguinte: “Agora está prostrada, não quer fazer nada, tem febre e apareceram-lhe umas pintinhas brancas na ponta da língua (ela diz que a língua pica)”. O diagnóstico chega minutos depois: “estomatite vírica. Cura-se com ben-u-ron, comidas frias e… paciência”. Pesquisámos o que queria dizer, bate certo com todos os sintomas da Pikitim. Na mouche! Conclusão: não há nada a fazer, é esperar.

É uma coisa muito chata, isto da estomatite vírica. Aparecem aftas na língua e até no céu da boca (confirma), o hálito é medonho (confirma), as gengivas ficam inchadas (confirma) e por vezes com sangramentos (ainda não, felizmente), baba-se muito (confirma), pode ter febre (confirma). Como é natural, a vontade de comer é nula, tal como a disposição para fazer seja o que for. Ficamos tristes com o diagnóstico, por ser coisa chata e potencialmente demorada, mas aliviados por, pelo menos, sabermos o que se passa. Ter informação dá conforto e ajuda a ser mais racional.

O tempo passa, a Pikitim emagrece a olhos vistos.

No momento em que escrevo, a Pikitim tem medo de ir para o mar porque tem um corte no pé, não come nem bebe porque lhe dói a língua (e os ouvidos a engolir, nas poucas vezes que tenta beber algo), continua a fazer febres, anda macambúzia, não sabe o que quer nem tem opinião sobre nada (a resposta mais comum por estes dias é encolher os ombros, algo muito anormal numa criança assertiva e decidida). É angustiante ver uma filha assim. Principalmente o facto de não comer nem beber (nem água!) e de estar a emagrecer de dia para dia. Temos conseguido, ao menos, que beba Dioralyte, por pouco que seja, uma vez por dia.

No momento em que escrevo de novo, acabámos de chegar a Langkawi, na Malásia. Dentro de dias, se a Pikitim não melhorar, colocar-se-á de novo a questão: continuar na Malásia, onde há teoricamente cuidados de saúde de qualidade, ou apanhar o voo marcado para Manila, nas Filipinas, onde contávamos passar três semanas deslumbrantes mas que não é propriamente conhecido por ser um país desenvolvido?

É uma angústia ver um filho doente e sentir-se impotente para ajudar. Apesar de viajantes experientes, estamos fora da nossa “zona de conforto”. E um filho é um filho. Nunca pensámos em desistir e não é por isso que vamos deixar de viajar, mas que é uma angústia ter um filho doente, lá isso é. Resta a certeza de sairmos mais fortes deste episódio e mais bem preparados para as adversidades futuras.

Leia também o artigo sobre prevenção de doenças pediátricas relacionadas com viagens e não deixe de fazer uma consulta do viajante para se aconselhar com um médico especialista.

P.S. No momento em que publico o texto, um dia depois de o ter escrito, a Pikitim está muito melhor. Começou a comer e a beber (quase nada é melhor que nada), as pintinhas na língua diminuíram e a febre parece que foi embora de vez. Alegria!

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Sobre o Diário da Pikitim

Este post pertence a uma série que relata uma volta ao mundo em família, com 10 meses de duração. Um projeto para descomplicar e mostrar que é possível viajar com crianças pequenas, por todo o mundo. As crónicas da viagem foram originalmente publicadas na revista Fugas e no blog Diário da Pikitim.

Veja também o artigo intitulado Viajar com crianças: 7 coisas que os pais devem saber.

Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

5 comentários em “Angústias (#14)”

  1. Alô! “Courage”, como dizem aqui na Bélgica! “Courage”! Foi só um precalço, a vosa pequena Pikitim estará como nova brevemente. E muitas vezes somos surpreendidos em países ditos pouco desenvolvidos com os cuidados de saúde. Ou o contrário… ir ao Hospital Amadora-Sintra é pior do que entrar na selva!

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  2. Pois imagino que não tenha sido fácil. Estomatite vírica (herpética) apanhou as minhas duas filhas… sempre em Janeiro (de anos diferentes). Na mais nova levou inclusivé ao internamento para que fosse alimentada por uma sonda, pois definitivamente deixou de comer. Tinha 2 anos e como tal não entendia que tinha que fazer os esforço apesar da dor. Mas tudo passou!
    Coragem e as melhoras para a Pikitim. O importante é que vá pelo menos bebendo sumos nessa fase mais aguda. Na semana seguinte ao aparecimento das vesículas na boca e garganta começa a cicatrização.
    Continuação de boa viagem!

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    • Olá Cláudia
      A Pikitim já está a melhorar. Hoje já conseguiu comer e tudo. Ao que parece, e felizmente, a que ela apanhou não é herpética… Obrigada e beijinhos

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  3. Ontem aqui em casa rezamos por vocês e pelas melhoras da Pikitim!
    Força e nada de desânimos!

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  4. Parabéns pelo exemplo que estão a dar a outros pais sobre o tema de viajar com uma criança! Não tenho filhos mas leio avidamente o que publicam na esperança de um dia, quando os tiver, poder seguir-vos as pegadas!
    Vivi 4 anos em Luanda e percebo bem (infelizmente) o que é o medo, aliás o pânico de não ter um médico, ou de o ter e simplesmente não confiar.
    Mas apaixonada como sou por viajar, particularmente pelo Oriente, e tendo tidos dos dias mais felizes da minha vida em locais que reconheço nas vossas memórias diárias, só vos peço… Continuem e indiquem os contactos (hotéis, restaurantes, ferrys, etc) por onde passam!

    e um beijinho à Pikitim

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