De Antakya a Trabzon, de Trabzon a Ankara, entre os bancos dos autocarros e os polegares esticados em busca de uma boleia, a dança dos vistos começou e estas duas semanas tornaram-se num rodopio pelas embaixadas, pela burocracia dos países da antiga URSS e pelo stress duma enorme capital.
“Precisam de uma fotografia, uma carta de recomendação da Embaixada Portuguesa, preencher o formulário, fotocópia do passaporte, transferência bancária e, claro, do passaporte. Tudo isto só para o visto da China“, dizia-nos a Dra. Maria da Graça. “Para o do Uzbequistão, precisam de um convite duma agência do país, duas fotografias…” e por aí fora, uma série de fotocópias, pagamentos, fotografias, cartas de recomendação, convites, formulários e muitas dores de cabeça, horas dentro dos autocarros, horas a caminhar encosta acima, ruas abaixo, má alimentação, chuva que não ajudava e o stress normal duma grande capital como Ankara.
Dias antes, numa viagem de autocarro que nos levou de Iskenderun, no sul da Turquia até Trabzon, começámos a ter a percepção do que seriam as próximas semanas. Burocracia, muita burocracia. Simpatia, mesmo que contra a vontade. Algumas negações de vistos, talvez. Estávamos a caminho da maior cidade turca no Mar Negro para tirar o visto do Irão. Em Ankara, havíamos lido, demorava pelo menos vinte dias. Em Trabzon, uns dois ou três dias. Perfeito. Logo que o autocarro parou, corremos para o Consulado do Irão. Fomos recebidos com simpatia. Quando viram a fotografia da Tanya com o hijab (o lenço que as muçulmanas usam para tapar o cabelo) o sorriso foi ainda maior. “Não precisava de uma fotografia assim”, disseram-lhe, “mas está muito bonita”. A hora do almoço veio logo a seguir e quando regressámos, à tarde, o passaporte foi-nos entregue. Um mês no Irão em menos de três horas.
No dia seguinte ficámos em casa a descansar das 18 horas mal passadas dentro do autocarro e, quando amanheceu, o nosso polegar esticou-se pela primeira vez para tentar arranjar uma boleia para o Mosteiro da Virgem Maria, mais conhecido pelo Mosteiro de Sumela, a cinquenta quilómetros de Trabzon. A estrada que nos leva natureza adentro é incrível. Ainda bem que não apanhámos nenhum carro que nos levasse directamente lá, pois assim tivemos oportunidade de caminhar uns quilómetros estrada acima, num silêncio total. A neve começava a aparecer no topo das montanhas e Sumela estava próximo. À primeira vista, tenho a mesma reacção que tive quando vi o Mosteiro de Mar Musa na Síria, ou os Mosteiros de Meteora, na Grécia: “De quem foi a ideia de construir um mosteiro ali, num sítio que desafia por completo todas as leis da gravidade?”. É impressionante, não há outra palavra.
Fundado na época bizantina, este mosteiro ortodoxo grego foi abandonado em 1923, aquando da revolução na Turquia. Construído sobre um abismo, a 400 metros de altura, tem na sua igreja escavada na rocha a sua maior pérola. Apesar dos frescos estarem num completo estado de deterioração – fruto de inúmeras assinaturas levadas a cabo essencialmente por turistas russos e por locais – não se pode ficar indiferente a tamanha obra.
Já em Trabzon, e depois de um apetitoso jantar preparado pelo Mehmet, o nosso anfitrião, escrevemos numa série de folhas A4 os destinos do dia seguinte, preparando a boleia. Não é difícil arranjar boleia na Turquia, especialmente para os estrangeiros. Não passaram muitos minutos até que conseguíssemos que o primeiro carro parasse e nos levasse uns dez quilómetros, para logo a seguir outro parar e nos levar mais uns setenta e o terceiro ser certeiro e nos levar direitinhos até à capital, Ankara. Mais de dez horas de viagem.
Dez horas de viagem foram exactamente as que pedalámos durante dois dias e que nos levaram da fronteira com a Síria a Iskenderun. Pelo meio, ficou uma das mais simpáticas e agradáveis surpresas desta viagem: Antakya. Antes território sírio (aliás, ainda se encontram mapas na Síria onde a cidade pertence ao país) esta povoação é conhecida como a cidade da paz. Aqui se pode encontrar apenas numa rua, uma mesquita, uma igreja e uma sinagoga. Um exemplo único, talvez, em todo o Médio Oriente. Foi também em Antakya que os seguidores de Jesus foram chamados pela primeira vez de cristãos, na Igreja de São Pedro, escavada na rocha, já fora do centro da cidade.
Em Antakya, grande parte dos costumes ainda são árabes. As pessoas dominam o árabe e o turco, a comida tem influência árabe e ninguém deve abandonar a cidade sem provar o delicioso kunefe, a arquitetura é rica em casas do Império Otomano, e pode ver-se em excelentes e bem preservadas casas por todo o centro histórico. Se estivermos com atenção, podemos ainda ver por cima de algumas portas uma cruz ou uma lua, que serviam para assinalar se, naquela casa, as pessoas eram muçulmanas ou cristãs. É uma cidade jovem, alternativa, aberta, moderna. Podem encontrar-se nela grupos de teatro, comunidades artísticas, ciclos de cinema. A associação Sanat Çikmazi é um bom exemplo disso e um local a não perder numa visita a Antakya.
Dali seguiríamos até Iskenderun, onde ficaríamos em casa dum rapaz que conhecemos precisamente em Antakya. Nada mais do que uma simples paragem de duas noites, sem nada que quiséssemos visitar de interessante, mas que se transformou numa paragem, pelo menos para as bicicletas, de três semanas. Colocadas na varanda dum terceiro andar com vista para uns prédios, foram abandonadas em prol do autocarro e do polegar, que nos levariam a tirar todos os vistos para os países seguintes.
Em Ankara tivemos uma enorme ajuda da Embaixada Portuguesa, que telefonou para todas as embaixadas que nos interessavam e recolheu todas as informações que necessitávamos, além de que nos passaram todas as cartas de recomendação sempre com um sorriso na cara. Um trabalho estupendo. Quanto aos vistos, as leis estão sempre a mudar, as moradas sempre a mudar, as caras atrás dos balcões sempre a mudar. Os mais fáceis foram os do Tajiquistão e do Quirguistão. Simples de mais, rápidos e eficientes, sem muitas burocracias e sem demoras. Simpáticos, acima de tudo. China, tiraremos mais tarde, pois o visto só é válido por três meses e nós só entramos no país daqui a quatro. Turquemenistão, não há qualquer dificuldade também, mas temos que ter o do Uzbequistão primeiro. Este último, sim, é o mais complicado. Já tivemos amigos que o tiraram numa semana sem quaisquer burocracias; outros, como nós, a quem foi exigido uma carta convite de uma agência de turismo do interior do país, à qual se tem que pagar, claro está. Isto está a dar dinheiro a alguém do governo, desconfiamos. Assim, saímos de Ankara à boleia com três países no passaporte. Já só faltam uns cinco ou seis.
A Capadócia será a nossa próxima paragem. A paisagem lunar e as casas trogloditas esperam-nos.
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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