Sensivelmente a meio da volta ao mundo, acabo de deixar para trás países como o Vietname, Camboja, Laos, Myanmar, Tailândia e, inesperadamente, também o Sri Lanka. Uma fase extraordinária desta viagem, recheada de momentos formidáveis, pese embora profundamente marcada pela tragédia tsunami.
A caminho da Malásia e depois de exploradas algumas ilhas do sul da Tailândia, a viagem em redor do planeta encontra-se sensivelmente a meio termo. Uma jornada recheada de momentos únicos e inolvidáveis, experiências extraordinárias polvilhadas com raras e insignificantes desilusões. Da maravilhosa baía de Halong à poluída e caótica Saigão, da paz dos templos de Bagan à dor dos sobreviventes nos cenários do tsunami, tempo agora para um balanço da segunda etapa desta viagem de sentido único.
Reflexões
À medida que Portugal ia ficando mais distante no avião com destino a Moscovo, era invadido por um sentimento de incerteza e atormentado por inúmeras questões sobre se fazer esta longa viagem seria uma decisão sensata. Sete meses depois, nem por um único momento senti algum arrependimento. Nunca me ocorreu abandonar a temporária vida de nómada global e voltar ao conforto dos ambientes familiares em Portugal. À parte o bacalhau de Natal regado com um saudoso azeite caseiro duriense, um bom café expresso, falar em português e os familiares e amigos, há poucas coisas de que verdadeiramente sinto falta. O ser humano é, por natureza, facilmente adaptável a novas realidades.
É agora perfeitamente normal usar papel higiénico em vez de guardanapos, utilizar casas de banho sem sanita e tomar banho de água fria, dormir sob uma rede mosquiteira ou mesmo ao relento, comer com pauzinhos e não saber com exatidão o que está no prato. Assim como viajar de forma desconfortável durante dez ou quinze horas num autocarro apinhado de gente, sacos de arroz, galinhas ou porcos e chegar a um lugar desconhecido a meio da noite. Faz tudo parte da magnífica experiência de viajar de uma forma livre e independente.
Ao fim de sete meses a percorrer parte do mundo, há coisas que vão mudando na maneira de estar de um viajante. A paciência e despreocupação são características que se vão desenvolvendo com o tempo. O pragmatismo na resolução dos simples problemas do quotidiano vai aumentando. Não tentar perceber tudo o que, num dado momento, está a acontecer em redor do viajante e acreditar que no final tudo acabará por funcionar, é uma regra de ouro que aprendi a respeitar. Especialmente quando se trata de mudar de poiso e a viagem entre os dois locais implica incontáveis mudanças de transporte. Nunca se sabe ao certo quando o próximo autocarro partirá e um bilhete não é garantia de lugar sentado. Por vezes, os horários são meramente indicativos e o próprio meio de transporte não é certo: um autocarro pode facilmente transformar-se numa carrinha, ou vice-versa. Aconteceu já comprar um bilhete que incluía uma longa travessia de barco e a totalidade da jornada acabar por ser efetuada numa carrinha de doze lugares. Mas tudo acaba quase sempre por resultar.
Em muitos dos lugares por onde fui passando, decisões impulsivas acabaram por fazer toda a diferença. Um simples “olá” a alguém que se cruza no caminho pode tornar os dias seguintes completamente diferentes. As pessoas que se conhece na estrada – habitantes locais ou outros viajantes -, principalmente quando o viajante é solitário, é provavelmente o factor mais relevante para a experiência vivida num lugar ser apenas normal ou tornar-se excecional. Um cumprimento e dois dedos de conversa já me proporcionaram, por exemplo, um convite de um jovem birmanês para entrar em sua casa. Lá dentro, numa casa de madeira de não mais de vinte metros quadrados, erguida sobre estacas, a sua mulher acarinhava o seu primeiro filho, recém-nascido de apenas um dia de idade. Uma xícara de chá aqueceu a conversa possível entre pessoas sem uma língua comum. A imagem do bebé feito casulo e respetivos pais sentados em volta de um braseiro na sua humilde casa, é uma das mais afetuosas que guardo desta viagem. E em todo o lado há experiências inesquecíveis aguardando os forasteiros, assim estes se deixem guiar por impulsos.
Lugares
Depois da Rússia, da Mongólia e da China, foi chegada a hora de penetrar no muito aguardado sudeste asiático e explorar o território do Vietname, Camboja, Laos, Myanmar e Tailândia, com uma curta e imprevista incursão ao Sri Lanka por altura do tsunami que assolou a região. O tsunami marcou vincadamente esta parte da viagem através de alguns dos mais difíceis momentos do ponto de vista emocional. Vestir a pele de um repórter fotográfico naqueles cenários de horror foi algo que me deixou abalado, mas ao mesmo tempo enriquecido.
Todo o Vietname foi uma experiência deslumbrante. Na zona de Sapa, visitar o mercado semanal da povoação pejado de gentes H´mong e quase ser embriagado com vinho de arroz quando pernoitei na casa de uma família de etnia Thai foram episódios memoráveis. Mui Ne é um lugar mágico. Pagaiar pela baía de Halong foi uma delícia para os sentidos. A pitoresca cidade de Hoi An, por onde os portugueses passaram séculos atrás, um encanto. Percorrer os túneis de Cu Chi, a partir de onde os soldados vietcongs fizeram a vida negra ao inimigo americano, foi extenuante mas recompensador. E visitar o Museu da Guerra em Saigão, uma experiência brutal mas absolutamente obrigatória para todo o viajante. E como esquecer a excelente culinária vietnamita, desde os restaurantes ocidentalizados até àquela refeição confecionada num carrinho ambulante e servida no passeio de uma movimentada rua de Saigão?
No Camboja, os templos de Angkor são de uma magnificência avassaladora e merecem a atenção de quem quer que passe pelo país. Mas o melhor de Angkor foi conhecer Aki Ra, o homem que sozinho tenta limpar o solo cambojano das minas que ainda por lá abundam, e a sua história de vida. Fascinante. Na Tailândia, caminhar até uma aldeia da minoria étnica Poe e dormir ao relento no alpendre de uma das famílias de uma aldeia, e aprender a mergulhar em Koh Tao foram alguns dos momentos mais altos até à data. E as filas de monges percorrendo as ruas de Luang Prabang, recolhendo dos habitantes locais comida para consumo no próprio dia foi uma das mais belas cenas que presenciei no Laos. Em Myanmar, recordo a paz dos templos de Bagan, a pitoresca ponte de U´Bein e a refeição que me foi servida no chão de uma humilde casa de uma família da minoria étnica Dhanu, entre muitos outros momentos deliciosos.
Portugueses
Viajar de forma independente, sem pressa e com rumo flexível, é algo por demais recompensador para todos os sentidos. É por isso com alguma tristeza que fui constatando que, ao contrário dos naturais de muitos outros países europeus, os portugueses perderam a veia descobridora dos navegadores de outrora: em sete meses de viagem cruzei-me apenas com quatro lusitanos. Gostava de ter encontrado muitos mais. Muito teria o país a ganhar se mais gente se fizesse à estrada na busca de novas culturas, diferentes povos, outros valores, sensações desconhecidas. Em duas palavras: alargar horizontes.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.